Quando a criação acorda antes do sol
- Claudia Gomes
- 10 de abr.
- 3 min de leitura
São quatro da manhã.
Estou sentada no ateliê, ouvindo o som que só o silêncio tem.
Lá fora, a noite ainda segura a respiração.
Cá dentro, uma enxurrada de ideias me arrasta, de novo.
Acontece há meses.
Quase sempre no mesmo horário. Às vezes às três, outras às quatro.
Nunca depois das cinco.
Não é ansiedade. Nem pensamento solto.
É outra coisa.
É como se uma voz antiga me dissesse: levanta, há algo que precisa nascer agora.
Tento resistir.
Fico na cama, respiro fundo, busco meditar, abraço o travesseiro como quem diz: “amanhã eu escrevo, agora preciso dormir.”
Mas há madrugadas em que o chamado é tão potente, que mais parece um tambor batendo no ventre.
Então me levanto. Acendo uma luz pequena. Esquento a água, e preparo meu chá.
Sento com o caderno no colo e a alma transbordando.

Foi assim que comecei a escrever meu livro, A Senhora do Bosque, que ainda está sendo escrito.
Mas já nasceu em mim, e vem se revelando palavra por palavra, como se já soubesse o caminho.
Esse livro carrega minhas encruzilhadas, minhas curas, minhas mulheres internas.
E foi nas horas limiares, entre o sono e o mundo, que ele me encontrou.
Também nascem nesses momentos os contos terapêuticos que escrevo com e para outras mulheres.
O Oráculo Criativo, que mistura símbolos, arte e intuição.
Os contos biográficos, onde a memória vira rito.
E os textos do Ateliê Poético, como este, feitos de madrugada, chá e revelação.
A madrugada tem sido minha casa criativa, mas há um custo, pois o corpo sente.
Depois de tanto tempo, ele pede trégua.
Os olhos pesam no dia seguinte. A energia vacila.
E eu me pergunto: até que ponto essa criação noturna é saudável?
Escrever de madrugada é bonito. Poético, até. Mas também é exigente.
A inspiração tem pressa, mas o corpo tem ciclo.
E é por isso que este texto também é um alerta de amor.
Para mim. Para você que me lê.
Porque o processo criativo não é apenas um sopro de beleza, ele é também matéria. Corpo. Frequência. Ritmo.
Julia Cameron, em O Caminho do Artista, nos ensina a criar rituais de escrita, e a respeitar nosso tempo interior.
Fala sobre escrever as páginas matinais, mas também sobre não se perder no fazer.
Elizabeth Gilbert, em Grande Magia, descreve a inspiração como um espírito errante que só se aproxima de quem está presente.
Sharon Blackie nos ensina que criar é escutar a terra, os ossos, as raízes, as estações da alma.
Eu diria: às vezes, essa escuta vem como um raio.
E embora os raios iluminem, eles também podem desgastar o céu.
O processo criativo é como uma semente. Às vezes ela germina à luz do dia. Outras vezes estala sua casca no escuro.

Nem toda semente vira flor. Nem toda flor precisa ser colhida. Nem toda colheita precisa ser compartilhada.
Criação não é exclusividade de artistas ou escritoras. Ela acontece em quem cozinha com alma, em quem acolhe com presença, em quem resolve um problema com leveza e invenção.
Criar é estar vivo com intensidade. É tecer beleza a partir da escuta. É bordar silêncio. É pintar dentro.
Hoje, mais do que nunca, reconheço que o processo criativo também precisa de margens.
De pausas. De sombra fresca.
De noites de sono.
De dias de não fazer.
É isso que venho aprendendo com o tempo: que a artista em mim floresce quando a mulher também é cuidada.
Se você também acorda no meio da noite com ideias brotando, saiba: você não está sozinha.
Mas escute seu corpo também.
Às vezes, ele só quer que você escreva uma linha, e volte a dormir.
Outras vezes, ele quer que você dance com a inspiração até o sol nascer.
Tudo bem.
O que importa é que essa criação não se torne cobrança. Que não se transforme em prisão disfarçada de voo.
Que a criação seja jardim. Com noites férteis, pausas amorosas, e colheitas no tempo certo.
Com amor,
da mulher que escreve à luz da madrugada, e agora aprende a descansar sob o céu do meio-dia.
Claudia Gomes
Estou amando esse seu desabrochar! Tenho me inspirado muito! Continue Deusa