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Quando a criação acorda antes do sol


São quatro da manhã.

Estou sentada no ateliê, ouvindo o som que só o silêncio tem.

Lá fora, a noite ainda segura a respiração.

Cá dentro, uma enxurrada de ideias me arrasta, de novo.

Acontece há meses.

Quase sempre no mesmo horário. Às vezes às três, outras às quatro.

Nunca depois das cinco.

Não é ansiedade. Nem pensamento solto.

É outra coisa.

É como se uma voz antiga me dissesse: levanta, há algo que precisa nascer agora.

Tento resistir.

Fico na cama, respiro fundo, busco meditar, abraço o travesseiro como quem diz: “amanhã eu escrevo, agora preciso dormir.”

Mas há madrugadas em que o chamado é tão potente, que mais parece um tambor batendo no ventre.

Então me levanto. Acendo uma luz pequena. Esquento a água, e preparo meu chá.

Sento com o caderno no colo e a alma transbordando.


Ilustração por Claudia Gomes
Ilustração por Claudia Gomes

Foi assim que comecei a escrever meu livro, A Senhora do Bosque, que  ainda está sendo escrito.

Mas já nasceu em mim, e vem se revelando palavra por palavra, como se já soubesse o caminho.

Esse livro carrega minhas encruzilhadas, minhas curas, minhas mulheres internas.

E foi nas horas limiares, entre o sono e o mundo, que ele me encontrou.

Também nascem nesses momentos os contos terapêuticos que escrevo com e para outras mulheres.

O Oráculo Criativo, que mistura símbolos, arte e intuição.

Os contos biográficos, onde a memória vira rito.

E os textos do Ateliê Poético, como este,  feitos de madrugada, chá e revelação.

A madrugada tem sido minha casa criativa, mas há um custo, pois o corpo sente.

Depois de tanto tempo, ele pede trégua.

Os olhos pesam no dia seguinte. A energia vacila.

E eu me pergunto: até que ponto essa criação noturna é saudável?

Escrever de madrugada é bonito. Poético, até. Mas também é exigente.

A inspiração tem pressa, mas o corpo tem ciclo.

E é por isso que este texto também é um alerta de amor.

Para mim. Para você que me lê.

Porque o processo criativo não é apenas um sopro de beleza, ele é também matéria. Corpo. Frequência. Ritmo.

Julia Cameron, em O Caminho do Artista, nos ensina a criar rituais de escrita, e a respeitar nosso tempo interior.

Fala sobre escrever as páginas matinais, mas também sobre não se perder no fazer.

Elizabeth Gilbert, em Grande Magia, descreve a inspiração como um espírito errante que só se aproxima de quem está presente.

Sharon Blackie nos ensina que criar é escutar a terra, os ossos, as raízes, as estações da alma.

Eu diria: às vezes, essa escuta vem como um raio.

E embora os raios iluminem, eles também podem desgastar o céu.

O processo criativo é como uma semente. Às vezes ela germina à luz do dia. Outras vezes estala sua casca no escuro.


Nem toda semente vira flor. Nem toda flor precisa ser colhida. Nem toda colheita precisa ser compartilhada.

Criação não é exclusividade de artistas ou escritoras. Ela acontece em quem cozinha com alma, em quem acolhe com presença, em quem resolve um problema com leveza e invenção.


Criar é estar vivo com intensidade. É tecer beleza a partir da escuta. É bordar silêncio. É pintar dentro.

Hoje, mais do que nunca, reconheço que o processo criativo também precisa de margens.

De pausas. De sombra fresca.

De noites de sono.

De dias de não fazer.

É isso que venho aprendendo com o tempo: que a artista em mim floresce quando a mulher também é cuidada.

Se você também acorda no meio da noite com ideias brotando, saiba: você não está sozinha.

Mas escute seu corpo também.

Às vezes, ele só quer que você escreva uma linha, e volte a dormir.

Outras vezes, ele quer que você dance com a inspiração até o sol nascer.

Tudo bem.

O que importa é que essa criação não se torne cobrança. Que não se transforme em prisão disfarçada de voo. 

Que a criação seja jardim. Com noites férteis, pausas amorosas, e colheitas no tempo certo.

Com amor,

da mulher que escreve à luz da madrugada, e agora aprende a descansar sob o céu do meio-dia.



Claudia Gomes


1 Comment

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Danielle
Apr 11
Rated 5 out of 5 stars.

Estou amando esse seu desabrochar! Tenho me inspirado muito! Continue Deusa

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