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A Crise da Narração e a Urgência de Ouvir Histórias

Sou leitora apaixonada de Byung-Chul Han. Seus livros, enxutos como flechas, atravessam o pensamento contemporâneo com uma lucidez rara. Em poucas páginas, ele abre abismos e revela estruturas invisíveis que sustentam, ou desmoronam, a sociedade em que vivemos.


Han é um filósofo sul-coreano radicado na Alemanha, autor de obras que já se tornaram fundamentais para entender os mal-estares da modernidade. Ele escreve sobre temas como o cansaço da performance, a transparência excessiva, a positividade tóxica, o desaparecimento do outro, a erosão da experiência. Seus textos, densos e ao mesmo tempo acessíveis, nos obrigam a parar. Respirar. Refletir.


Em A Crise da Narração, senti que ele falou diretamente ao coração do meu ofício: o de trabalhar com histórias.

Vivemos numa época em que se fala muito de “narrativas”. Narrativas de marcas, de produtos, de si mesmo nas redes. Mas, como alerta Han logo nas primeiras páginas, o uso inflacionado da palavra “narrativa” já denuncia a sua crise. Há muito storytelling… e tão pouca história real. Tão pouco enraizamento. Tão pouca escuta.


Vivemos um colapso narrativo. E ele é mais profundo do que parece: é o vácuo de sentido que se esconde atrás da avalanche de informações. É a orfandade do silêncio em meio ao ruído. Han escreve que não há mais “ninhos de sonhos” na internet, e talvez seja essa a imagem mais poética e trágica do livro. Os caçadores de informação espantam os pássaros do devaneio. E, sem devaneio, não há imaginação. Sem imaginação, não há história. Sem história… não há humanidade.


A sociedade da informação produziu uma pobreza de experiência. Estamos saturados de dados, mas famintos de sabedoria. Saltamos de um estímulo a outro sem digerir nada. Os órgãos de percepção estão tão permanentemente estimulados que já não sabem mais pausar. Contemplar. Escutar.


E é aí que vejo a urgência, e a beleza  do trabalho com histórias.


Na Contoterapia, cultivamos justamente aquilo que a modernidade perdeu: a escuta cuidadosa. A pausa que permite que uma história seja ouvida com o corpo inteiro, não apenas com os ouvidos. A escuta que costura os fios soltos da experiência. Que dá forma ao que foi vivido, sentido, atravessado. A escuta que acolhe e devolve à narradora o fio de sua própria existência.


Byung-Chul Han escreve que “a experiência pressupõe continuidade e tradição”. É isso que torna a vida narrável, e não apenas sobrevivível. Sem experiências que se entrelacem, que façam sentido, que criem raízes, restam apenas fragmentos: uma vida em pedaços. A modernidade nos prometeu liberdade, mas nos entregou desorientação.


E o mais grave: estamos perdendo a capacidade de compreender o que lemos e ouvimos.


Segundo a última pesquisa do Instituto Pró-Livro (2023), apenas 52% dos brasileiros afirmam ter lido ao menos um livro nos últimos três meses. E entre esses, uma porcentagem ainda menor compreende plenamente o que leu. A leitura virou uma tarefa funcional, e não mais uma vivência transformadora.


Outros pensadores como Walter Benjamin, no ensaio O Narrador, já haviam previsto essa crise. Ele escreve que o narrador tradicional desapareceu junto com a experiência compartilhada. A sabedoria que se transmitia de boca a boca, de geração em geração, foi substituída por notícias, por relatórios, por dados. O saber que vinha da vida foi vencido pelo saber que vem da tela.


Mas talvez não tudo esteja perdido.


Há ainda aqueles, como nós,  que insistem em sentar em roda, em abrir o coração para ouvir uma história. Que reconhecem o poder do mito, do conto, da memória costurada em palavras. Há ainda quem borde com fios de experiência o tecido da própria vida.


Contar histórias é um ato de cultivo poético. Escutá-las com presença é um gesto profundo de cuidado.

Porque no fundo, escutar uma história é também restituir a alguém a dignidade de ser compreendido.

E enquanto houver alguém disposto a escutar com o corpo inteiro, a crise da narração ainda pode ser transformada em reconexão.



Com carinho, 

Cláudia


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