Revitalizar a Terra, Revitalizar a Alma
- Claudia Gomes
- há 5 dias
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Tenho vivido dias intensos. A revitalização da horta ocupa minhas mãos, meus pensamentos e, de certa forma, também minha alma. Não é apenas um espaço de cultivo; é um pedaço sagrado de chão onde flores, plantas medicinais e tintórias crescem lado a lado, onde cada folha guarda um segredo e cada raiz sustenta uma história. É um oásis que, antes de alimentar o corpo, alimenta a vida que pulsa dentro de mim.
O tingimento natural nasceu desse chão e nele reencontrei, mais uma vez, a minha arte. Tingir não é só colorir tecidos. É um gesto silencioso que atravessa o tempo. É herdar das mãos ancestrais o conhecimento de extrair pigmentos de pétalas, folhas e cascas. É devolver ao mundo a cor que um dia nasceu da própria terra. Pouca gente imagina o quanto essa prática é vasta e profunda, como vai além do que os olhos percebem. Talvez porque a beleza, quando é verdadeira, não se exibe em alarde, mas se revela em camadas para quem se dispõe a ficar.

Este ano tenho a sorte de não estar sozinha nesse trabalho. Uma nova ajuda chegou para cuidar das partes mais pesadas, e dou imenso valor a isso. Sozinha, não haveria tempo ou fôlego para manter o ritmo, e talvez até este texto não existisse. Mesmo assim, tenho me dedicado de corpo inteiro. A horta está mais florida; há mais rosas do que antes. E eu me vejo cultivando flores não só por beleza, mas como quem planta pequenos altares para que a vida se sinta bem-vinda.
Confesso que nos últimos dois anos quase perdi o ânimo. As mudanças climáticas se fizeram sentir de forma dura; o calor foi excessivo e muitas plantas não resistiram. Foi desolador ver tanto esforço secar antes de florescer. Mas este inverno, mais rigoroso, me fez sentar diante da terra em silêncio. Antes de recomeçar a plantar, passei dias apenas tocando o chão, ouvindo-o. A terra tem sua própria fala, que não se ouve com os ouvidos, mas com o corpo inteiro. Perguntei a ela o que queria receber, que espécies seriam bem-vindas, como queria ser cuidada daqui para frente.
Cuidar de um espaço assim não é um exercício mental. É algo visceral, quase instintivo. É deixar que o corpo, a intuição e a escuta profunda ditem o passo. O conhecimento técnico ajuda, orienta, mas não substitui a presença inteira. É um aprendizado que se afina com o tempo, e no entanto é rápido, porque é nossa verdadeira natureza.
Na horta, percebo que não é sobre o que eu quero plantar; é sobre o que a terra deseja. Ela é a maestra. As plantas são os músicos. E o clima, com seus caprichos, é o espetáculo inteiro. Há dias em que o sol entra como um violino agudo, afinando cada folha com um brilho sutil. Há manhãs de neblina em que tudo se cala, como um contrabaixo grave preparando o compasso. A chuva, quando vem, é percussão que limpa e desperta. E eu, ao invés de reger, aprendo a ser parte da orquestra. Há tempos de andante, de crescimento lento e paciente; tempos de allegro, quando tudo floresce de repente; e também tempos de silêncio, que não são vazios, mas pausas necessárias para que a música prossiga.
Cultivar um jardim comestível e tintório é, para mim, um ofício de maestria. Não a maestria da perfeição, mas a do ofício que se repete até se tornar música nas mãos. Saber quando cortar um galho para que o pé respire melhor; perceber que determinada planta precisa de sombra antes que ela peça; identificar o momento exato em que a flor entrega seu pigmento mais intenso — tudo isso é resultado de um diálogo íntimo entre quem cuida e quem é cuidado. É uma afinação contínua, onde o olhar aprende a ler as entrelinhas verdes e o ouvido se acostuma a perceber até o som seco de uma folha que pede água.
Além da horta, tenho dedicado atenção ao meu mudário. Quando o construí, imaginei um espaço modesto, destinado a semear, guardar ferramentas e sacarias. Mas ele mudou de vocação; tornou-se também um ateliê de tingimento. Ali, plantas e flores não apenas crescem; elas se transformam em cor. Agora, além de criar com as plantas, permito que elas também pintem o mundo. E eu, que sou intuitiva, sigo sem pressa para saber onde tudo isso vai dar. Apenas caminho. Só depois, quando as coisas florescem, percebo: ah, então era para isso que fiz aquilo.
Durante muito tempo achei que viver assim, seguindo a intuição, era errado. Aprendi que era preciso planejar tudo, traçar metas, prever resultados. Mas hoje sei que esse modo de viver é o que me mantém inteira. Se não estivermos atentas, o mundo nos ensina a parar de escutar o próprio coração. Eu, felizmente, voltei a escutar.
O trabalho na horta não tem prazo para acabar. E, no fundo, nunca acaba. É ciclo, é retorno, é música sem fim. Hoje mesmo recebo novas mudas para fazer parte da família que cresce ali. Talvez por isso tenha aparecido menos no Instagram; minhas histórias, por agora, têm sido contadas às plantas. Elas ouvem em silêncio, mas eu sei que entendem.
Com afeto,
Cláudia Gomes