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Ofício de Tecer

No texto passado escrevi sobre o tear, e com certeza voltarei outras vezes a esse assunto. Há temas que não se esgotam, apenas se desdobram, como o próprio fio. Quanto mais ele corre entre os dedos, mais histórias desperta, mais memórias se revelam.


Este último mês tem sido fértil e estranho. Um tempo úmido, criativo e tenso. A obra do novo ateliê segue avançando, meu corpo pede cuidados, a alma se expande em novas aprendizagens. Sinto que estou em um entrelugar, costurando o que fui e o que ainda serei. Entre uma camada de cansaço e outra de encantamento, algo dentro de mim se reorganiza.


Nos últimos anos fui destravando minhas artistas internas, a bordadeira, a tingideira, a pintora, a contadora de histórias. Todas se revezam pedindo espaço e tempo. E agora chegou a vez da tecelã, que há anos me chamava baixinho. Pois finalmente atendi. Depois de muito namorar essa arte e escolher o tear certo, comprei meu tear de pente liço.



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O tear de pente liço é simples e sábio. Diferente dos teares grandes e complexos, ele permite sentir o fio de perto, acompanhar o som do pente como se fosse a respiração. É o tear das aprendizes, mas também das mestras, pois ensina o essencial: o ritmo, a paciência e a escuta. No tear de pente liço o corpo todo participa. As mãos, os ombros, os olhos e a respiração se encontram num mesmo gesto.


Nunca havia sentado diante de um tear. Montar o meu foi uma mistura de curiosidade e reverência. Aprendi o que é urdir, essa palavra tão bonita que vem do latim ordīri, dar início, começar uma obra. Urdir é o princípio da criação. É o momento em que os fios são medidos e dispostos com cuidado sobre a urdideira, instrumento antigo que serve para organizar a base do tecido.


Urdir é alinhar o caos. É escolher a direção dos fios, definir a largura do caminho, construir a estrutura invisível do que nascerá. A urdideira é quase um altar. Diante dela o tempo muda, o pensamento abranda. Cada fio passado é uma intenção silenciosa, um voto de confiança no que ainda virá.


Depois vem colocar a urdidura no tear. Um trabalho longo, paciente, cheio de pequenos desafios. Levei horas para ver o tear finalmente pronto. E então, só então, comecei a tecer.


Tecer é outro tipo de silêncio. O fio vai e vem, a navete desliza, o pente bate e o corpo encontra um ritmo que parece respirar por si só. A navete (ou naveta, nas variações antigas) é uma peça alongada, de madeira, que lembra um barquinho. E justamente por isso, em várias línguas ela se chama shuttle, navette, navicella. Ela desliza entre os fios da urdidura levando o fio da trama, de um lado ao outro.


O gesto repetitivo é meditativo, o pensamento se dissolve e de repente o tempo se dilata. A respiração se ajusta ao movimento e o corpo inteiro entra em sintonia com o fio.


Mas tecer também é lidar com o erro. Tecia um trecho e percebia algo fora do lugar. Desmanchava e recomeçava. Aprendi que desmanchar faz parte do ofício. No tear, o erro é apenas um fio que pede outro caminho. Aprender sozinha é caminhar por um território sem mapa. Tropeça-se mais, mas o olhar se aguça e o tato se educa.


Há algo de profundamente feminino em trabalhar com o têxtil. O fio é uma extensão da vida, e as mulheres sempre souberam disso, mesmo sem dizer palavra. O que me toca é perceber como, em tantas partes do mundo, há mulheres que continuam tecendo como quem respira.


Penso nas tecedeiras do Peru, que tingem a lã com pigmentos da terra e do corpo das plantas. Elas fiavam sentadas ao sol, conversando baixo, passando de mãe para filha o segredo das cores. Penso nas mulheres japonesas do Boro, que costuravam pedaços de tecidos antigos para aquecer suas famílias nos invernos frios. Não havia luxo, havia amor e permanência.


Lembro também das artistas têxteis contemporâneas, que transformam o tear em poesia. Sheila Hicks, com seus fios monumentais que parecem raízes suspensas no ar. Anni Albers, que levou o tear da casa para os museus, provando que o têxtil é arte e pensamento. Olga de Amaral, da Colômbia, que faz da fibra um ouro silencioso. E tantas outras mulheres, muitas anônimas, que seguem criando mundos com linhas, retalhos, fios de lã, algodão e memória.


Tecer é o gesto que une todas elas. É trabalho e é reza. É arte e é sustento. O tecido nasce das mãos e volta para o coração. Quem tece sabe: o tear é um espelho da vida. Ensina a ter paciência, a corrigir o erro com calma, a reconhecer o limite do fio e a beleza do que se forma aos poucos.


Enquanto escrevo, o som do meu tear ainda ecoa no corpo. O movimento dos fios me leva a um estado de quietude. É como se cada passada da navete dissesse baixinho que tudo tem seu tempo, que não há criação sem demora. O tear me lembra de viver com mais compasso, mais presença, mais fé nas pequenas repetições do dia.


Ainda sou aprendiz. Mas talvez toda mulher que se põe diante de um tear seja sempre aprendiz. Porque tecer é um verbo infinito, que se renova a cada fio.


Com afeto,


Cláudia Gomes

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