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Entre o regador e o fogo da panela

Tenho aprendido que a vida, como a horta, é feita de ciclos. Nada é definitivo. Tudo nasce, cresce, amadurece e, cedo ou tarde, se transforma. Há tempos em que o verde explode em cada canto, e há tempos em que a terra parece dormir, guardando em silêncio o que virá depois. Cuidar de um jardim comestível é, antes de tudo, aprender a conviver com o tempo; o das estações, o das plantas e o meu próprio tempo interior.



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A horta aqui da chácara tem suas fases, suas manias e suas surpresas. O que cresce bem no outono se recolhe no verão, e o que brota com força em setembro definha em julho, pedindo abrigo. No frio, tudo parece mais bonito; o orvalho demora mais a evaporar, e as folhas guardam um brilho sereno. No verão, o calor judia das plantas e de mim também. A rega precisa ser constante, o solo precisa respirar, e o corpo aprende que cuidar da terra é também cuidar do cansaço.


Muita gente me pergunta por que não automatizo a irrigação. A resposta é simples e vem de dentro: porque é nesse gesto diário que mora o vínculo. Rego com as próprias mãos, e, enquanto a água desce, algo dentro de mim também se acalma. A mangueira deslizando entre as folhas, o cheiro da terra úmida, as abelhas passando rente, tudo isso é oração. É o meu tempo de silêncio, de observação, de escuta.


Observar é um verbo esquecido, e a horta me devolve essa sabedoria. Enquanto molho as plantas, reparo nas pequenas mudanças que, de tão lentas, passam despercebidas a olhos apressados. A folha nova que despontou, o broto que resistiu à geada, a abobrinha que inchou durante a noite. Reparo também nas visitas: as formigas, os passarinhos, as joaninhas. Cada uma tem seu papel, cada presença um sentido.


Depois do café, gosto de ir cedo. A manhã é o melhor horário para ver o jardim acordar. As primeiras abelhas zumbindo, os passarinhos ensaiando seus cantos, o sol tocando devagar o verde das folhas. Fico ali por uma hora, talvez mais, e nunca é igual. Sempre há uma poda a fazer, um canteiro a refazer, uma planta que pede atenção, uma folha caída que anuncia o fim de um ciclo.

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Agora, com o antigo mudário se transformando em ateliê de tingimento, o trabalho da terra e o trabalho das cores se entrelaçam de um modo bonito e inevitável. Enquanto a panela ferve com o extrato vegetal, aproveito para cuidar da horta. O vapor colorido se mistura ao cheiro do manjericão, e tudo parece fazer parte de um mesmo ritual. O fogo e a água, o pigmento e o verde, a mão que planta e a que tinge; é o mesmo gesto repetido com outro nome.


Foi por isso que decidi construir o Ateliê Botaniká bem ao lado da horta. Não queria muros entre esses mundos. Quero um espaço onde tudo converse: o jardim comestível, o jardim tintório e o ateliê. Três estações de trabalho e alma que se tocam e se completam. Sonho com o dia em que estarei ali, entre o regador e a panela, vivendo uma rotina que não separe mais o que é arte do que é vida.


Venho estudando agricultura sintrópica para essa nova fase do jardim. É uma forma de cultivo que aprende com a natureza, e não contra ela. A sintrópica não vê o mato como inimigo, nem a sombra como obstáculo. Ela entende que cada planta tem um papel, e que o equilíbrio nasce da convivência, não da exclusão. Enquanto a agricultura comum se baseia em retirar da terra o que se quer, a sintrópica oferece em troca. Planta-se para colher, mas também para devolver. É um sistema que observa a floresta e tenta imitá-la: diversidade, respeito aos ciclos, convivência de espécies e uma beleza que vem da desordem aparente.


Imagino o meu jardim assim: uma pequena floresta comestível e tintória, onde alfaces crescem ao lado de tagetes, onde o crajuru divide espaço com o alecrim, onde a anileira colore o fundo dos canteiros. Um lugar onde as tintas nascem do próprio solo e as flores se transformam em pigmentos. Tudo em roda, tudo conectado.



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O Ateliê Botaniká nasce dessa visão. Um espaço vivo, onde o fazer artístico é extensão natural do cuidar da terra. Um ateliê que respira, onde o tempo é o da maturação das cores, o do cozimento lento, o do ciclo das estações. Quero que quem vier aqui perceba isso: que arte e natureza não são opostas, são continuação uma da outra. Que tingir um tecido pode ser um ato de contemplação, e regar a horta pode ser uma forma de pintura.


Tenho sonhado com o dia em que as mulheres venham para as vivências e encontrem esse lugar pleno, onde a natureza e a arte se abraçam. Que elas possam colher uma folha e saber que dali também nasce uma cor. Que possam entender que todo processo criativo começa na terra, e que, antes de ser obra, é gesto, é relação, é cuidado.


Penso que, no fundo, é isso que sempre busquei: um modo de viver em que cada ato simples carregue um sentido maior. Regar, tingir, bordar, cozinhar, escrever; tudo vem do mesmo lugar. Tudo é oração quando feito com presença.


A terra ensina devagar. Exige paciência, silêncio e constância. Não se impõe, convida. E quanto mais eu me deixo ensinar por ela, mais percebo que a arte verdadeira é aquela que nasce desse chão: simples, generosa e cheia de vida.


Talvez por isso eu diga, com as palavras que aprendi escutando o vento entre as folhas: o Ateliê Botaniká não é um lugar, é um modo de existir. Um modo de plantar cor, de colher silêncio e de viver o tempo com as mãos na terra.


Com afeto,

Cláudia Gomes

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