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Texto e notas do meu diário criativo.

02/12/2025

O fuso, meu corpo e as lãs que me ajeitam por dentro


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Hoje caminhei pela casa com meu fuso nas mãos. Ele parece uma coisa pequena, mas a verdade é que virou companhia constante. Segue comigo da cozinha ao jardim, da sala ao ateliê improvisado, do silêncio da manhã ao cansaço da noite. E eu, que ainda nem domino a técnica, me percebo mais alinhada quando ele gira. Como se dentro de mim existisse um fio que também precisa ser torcido, organizado, acalmado.



Nota: O fuso é simples. Tão simples que chega a ser comovente. Nada nele distrai. Nada engana. Ele exige presença.



Gosto dessa exigência. O mundo moderno nos pediu rapidez e eficiência a vida toda. O fuso pede o contrário. Ele quer que eu volte. Que eu PARE. Que eu SINTA . E nesse movimento lento, o corpo encontra um ritmo que a cidade nunca me deu.



O braço conduz. Os dedos escutam. A coluna se ajeita. A respiração acorda. A lã responde ao meu estado sem me julgar. E eu descubro que fiar não é apenas artesanato. É diálogo. É corpo dizendo ao espírito: fica comigo, não se afaste!




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A lã corriedale que recebi hoje me abraçou primeiro pelo cheiro. Tem perfume de terra limpa. De sol guardado na pele. Ela se oferece ao meu toque com uma docilidade que me comove. Parece saber que sou iniciante. Parece me ensinar enquanto se transforma.



Corriedale é uma raça de ovelha, e a lã leva esse nome justamente por vir dessa espécie específica. É uma das lãs queridinhas para quem fia, especialmente iniciantes, porque ela é generosa, e macia ao toque das mãos.



Faz meses que não escrevo no meu caderno criativo. Meses sem desenhar no meu diário, e compartilhar o que cresce e morre em mim. Meu diário criativo sempre foi meu confidente, meu território sagrado, meu quintal íntimo onde planto além das palavras, desenhos que contam histórias e sentimentos da minha criança e minha anciã. E hoje voltei. Voltei porque o fuso abriu a porta. Voltei porque a presença que ele exige me trouxe de volta para dentro.



Nota: O fuso me devolveu ao diário criativo. Um lugar onde mora minha criança e anciã interior. Onde recebe o mais precioso de mim.



2025 está terminando. Nunca gostei das datas engessadas do calendário gregoriano. Ele cria finais abruptos e começos barulhentos. Eu prefiro o tempo da lua. O tempo das 13 luas. Cada lua traz um aprendizado. Cada lua ensina um ritmo. No calendário lunar não existe fim. Existe ciclo, respiro e renascimento.



Aprendo muito com isso. A Terra nunca apressa nada. O corpo também não deveria. A lua cresce e mingua no tempo certo, sem pedir permissão. E eu tento me inspirar nela. Tento viver de forma mais circular e menos ansiosa. Mais presente no que nasce, morre e se transforma em mim.



2025 foi um ano exigente. Me atravessou de formas que ainda estou entendendo. Houve noites difíceis. Houve lágrimas que eu escondi de mim mesma. Houve cansaços que me dobraram. Mas houve também beleza. Cresci por dentro como não crescia há anos. E agora vejo que esse ano inteiro foi uma espécie de cardagem interna. Um preparar de fibras. Um abrir de caminhos para o fio que eu precisava fiar em mim.



Nota: Cardagem é o processo de desembrulhar a lã, abrir as fibras, retirar nós, alinhar os fios e

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deixá-los soltos, fofos e penteados para a fiação. É como pentear cabelos longos que ficaram ao vento, ou soltar os nós de um coração cansado.



Estamos construindo um ateliê novo. Um espaço para minhas artes, minhas lãs, minhas tinturas, meus tecidos, minhas histórias. E percebo que enquanto as paredes do ateliê sobem, alguma coisa dentro de mim também se ergue. Como se eu estivesse sendo reconstruída junto com ele. Um tijolo aqui, e um respiro ali.



Hoje, enquanto fiava, pensei muito sobre sincronicidade. Esse jeito misterioso com que a vida conversa conosco por gestos mínimos. O fuso me ensina isso. Quando a lã se rompe sem motivo aparente, quase sempre há um motivo interno. Quando o fio aflui docemente, quase sempre meu corpo está em paz.



E percebo que o fuso, sem dizer palavra alguma, me reorganiza. Me coloca de volta no trilho. Me acalma sem promessas. Me pede apenas que continue, ou que ao menos, tente e confie. Que aceite o fio torto, fino ou grosso demais como parte do processo.



A lã me ensina a respeitar cada etapa. A cardagem. O toque. A torsão. A paciência entre um gesto e outro. A vida deveria ser assim. A gente deveria se perceber como lã: matéria viva, moldável, sensível, capaz de virar tecido quando chega a hora. Não antes.



Nas tradições ancestrais, a lã sempre foi símbolo de proteção, renascimento, calor, continuidade. Era usada em rituais, em travessias, em partos, em funerais, em invernos rigorosos. Era também símbolo de destino. De fio que se tece e fio que se corta. Quando toquei a lã hoje, senti que toquei uma história muito maior que a minha. Sinto que entrei numa linhagem feita de mulheres que fiaram antes de mim, mulheres que rezaram e cantaram enquanto fiavam, mulheres que se curaram torcendo lã em noites longas.



Nota: Talvez eu esteja voltando para um lugar que sempre foi meu.



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E por isso escrevo, desenho, devaneio. Para não esquecer, e para honrar esse encontro entre fuso, corpo, e ancestralidade. Para registrar que, depois de meses, voltei ao meu diário criativo porque o fuso me chamou. Porque ele me reuniu. Porque no seu giro lento ele me encontrou onde eu tinha me perdido.



Voltar a fiar é voltar a mim.




E meu diário, sempre paciente, sabia que eu voltaria diferente. Mais funda. Mais inteira. Sabia que nenhum inverno me leva por completo. Sempre há um restinho de brasa esperando o sopro certo.









Com afeto,

Cláudia Gomes

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