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O Fio que Me Reúne

Tenho passado algumas horas com meu tear de mesa. Ele fica perto da janela, onde o sol da manhã pousa manso e o vento brinca de enroscar nos fios coloridos. Gosto desse canto do ateliê, porque ali o tempo parece se alongar e eu posso ouvir meus pensamentos respirando. O tear é pequeno, mas ensina grandezas; cada linha que passo é um exercício de paciência, cada trama um convite à presença.


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Nos dias bons o fio corre macio entre os dedos e sua forma surge quase sozinho, como se soubesse o caminho. Em outros, a lã se embaraça e a trama se recusa a acontecer. Aprendo a respeitar o humor dos fios, o silêncio do gesto, o tempo das mãos. A tapeçaria não nasce à força, ela pede paciência.


Quando criança, as tardes eram regadas ao som da máquina de costura da minha mãe. Eu brincava por perto, fascinada com a transformação que acontecia ali; um pedaço de tecido virava roupa, cortina, toalha, história. Minha mãe costura até hoje, mesmo achando que não é boa nisso, e talvez por isso eu a admire ainda mais. Minha avó, que já partiu, era crocheteira; minha tia também costura, e suas mãos conhecem a linguagem dos tecidos. Percebo que há muito tempo um fio nos atravessa, um fio que não é só de sangue, mas de criação. As mulheres da minha família sempre fizeram o mundo com as mãos, costurando, crochetando, tricotando ou bordando, e talvez seja por isso que me sinto tão em casa diante do tear.


A tecelagem me faz lembrar também de quando tecia mandalas coloridas. Foram anos de entrega àquela arte circular feita de fios e fé. As mandalas me ensinaram sobre harmonia, silêncio e ordem interior. Tenho ainda muitas lãs daquela época, e embora sintéticas, são fios cheios de lembranças. Hoje esses materiais já não fazem mais sentido no caminho que escolhi seguir; meu olhar se voltou às fibras naturais, aos pigmentos botânicos, à terra. Mas não consigo simplesmente me desfazer das lãs antigas, elas também fazem parte da minha história, além de sentir que muitos desses materiais precisam de transformação.


Então encontrei um destino bonito para elas: transformá-las em pequenas tapeçarias. Obras que

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misturam fios reaproveitados do passado com novos materiais, como se eu pudesse costurar o ontem e o amanhã num mesmo pano. Essas tapeçarias vão nascer no meu tear de mesa e, mais tarde, terão lugar no Ateliê Botaniká, levando consigo a beleza da reciclagem, da transformação e da memória.


Tecer, para mim, é um modo de contar histórias. Penso em Penélope que tecia o tempo em segredo, em Aracne que ousou tecer o impossível, nas fiandeiras dos contos antigos que torciam o fio da vida entre os dedos, e nas tecelãs anônimas que fiavam em silêncio, segurando o mundo pela ponta da linha. Todas elas vivem em mim quando passo o fio pelo tear.


Há um saber antigo que só as mãos conhecem. O tear me ensina sobre ritmo, sobre paciência e sobre a leveza de não querer controlar o resultado. Se o fio está tenso demais ele se parte; se está frouxo o desenho se perde. É preciso encontrar o ponto certo, aquele espaço entre o esforço e a entrega, entre o fazer e o deixar ser.



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Sou um pouco autodidata; gosto de aprender com o corpo, pelo erro, pela tentativa. Aprendo olhando, sentindo, repetindo. Quando o aprendizado amadurece, busco mestres, livros, trocas. Mas primeiro preciso sentir que o saber germinou em mim, que o gesto se enraizou. Assim aprendo, com as mãos sujas de cor, com o olhar curioso, com a alma atenta.


Enquanto o tear grande não chega, sigo tecendo pequenas tapeçarias. Cada uma nasce como quem colhe flores no quintal, com cuidado, com presença, com gratidão. E percebo que o fio não une apenas as lãs; ele também costura os pedaços de mim. As tapeçarias que nascem agora carregam minha história, as mandalas, as mulheres da família, as cores da terra, os fios do tempo.


O tear me reúne, a trama me sustenta, e talvez toda arte seja isso, o desejo de alinhar o coração com o gesto, de dar forma visível ao invisível.




Com afeto,

Cláudia Gomes

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