A audácia da poesia
- Claudia Gomes
- há 15 minutos
- 3 min de leitura
Há quem diga que escrever poesia é para os eruditos, para os que passaram anos mergulhados nos livros, estudando métrica, ritmo e figuras de linguagem. Eu, porém, aprendi cedo que a poesia não pede licença a ninguém para nascer. Ela chega do jeito que quer, como uma visita inesperada que bate à porta da cozinha enquanto mexo uma panela no fogo, como uma brisa súbita que atravessa o quintal enquanto rego o jardim. Nunca me sentei diante do papel para pensar em um poema, e, no entanto, eles têm me acompanhado desde a adolescência, surgindo quando menos espero.
Talvez seja mesmo audácia, essa de me deixar atravessar pelos versos sem saber se eles cabem nos moldes literários. Mas não me importo. O que me importa é o alívio de ver que as palavras encontram forma, que os sentimentos que me confundem ou apertam encontram um modo de sair para fora sem me machucar. É o corpo visceral que fala, e na poesia encontra abrigo.
Muitas vezes escrevo no celular, às pressas, entre uma tarefa e outra, porque não dá tempo de pegar o caderno. Os poemas ficam ali guardados, hibernando, até que um dia chegam às páginas do meu caderno de poesias. E esse gesto de passar para o papel é quase um ritual, como se eu desse a eles uma casa de verdade, depois de terem dormido em abrigos improvisados.
Já me perguntaram se não tenho vontade de publicar esses poemas. Eu penso, respiro fundo e respondo: não sei. Porque mostrar certos versos seria como tirar a roupa em público. É íntimo demais, profundo demais, delicado demais. Alguns poemas são relicários que abro apenas para mim, ou para alguém muito próximo. Outros, de vez em quando, sinto vontade de mostrar ao mundo.
Mas gosto de falar sobre poesia, isso sim. Porque falar dela é como falar de um amor antigo e fiel, que nunca me abandonou. Ler poesia, então, é ainda mais: é como receber colo de mãe, é encontrar um abraço num momento de desamparo. É sentar debaixo do flamboyant do meu quintal, abrir um livro de Chantal Maillard e sentir que há alguém no mundo capaz de transformar silêncio em ouro líquido. É me deixar embalar pelos versos de Rumi, que falam de Deus como se falassem da própria respiração. É beber das palavras de Khalil Gibran e perceber que o sagrado também está no pão da mesa, no gesto mais simples. É reencontrar Manoel de Barros no chão das miudezas, Adélia Prado no fervor da vida doméstica, Sophia no sopro do mar.
E penso que é isso que a poesia faz: ela nos devolve ao essencial. Ela abre a fresta para que o que parecia indizível encontre voz. É por isso que, tantas vezes, quando sinto o coração cheio, pesado, confuso, a poesia me visita como quem abre a janela de um quarto escuro.
Hoje, então, decidi partilhar um poema que nasceu numa madrugada de inverno. Eu havia despertado com um único verso, e o resto veio como uma revelação. Era Deus, penso eu, tocando meu coração.
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Centelha
Senti teu hálito na minha boca,
como quem sobe descalça uma geleira.
Tua boca sagrada
tocou meu interior,
a alma inteira,
como o cume de uma montanha.
Foi breve e intenso,
amoroso e profundo.
Lágrimas rolaram,
porque eu sabia
que aquele instante passaria.
Mas foi bastante,
suficiente
para acender no meu coração
a centelha do Amor.
Cláudia Gomes
Inverno 2019 - Peru
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