O tempo da cor: tingimento natural como gesto, memória e rezo
- Claudia Gomes

- 7 de ago.
- 4 min de leitura
Algumas de vocês que me leem já viram esse assunto aparecer por aqui: o tingimento natural.
Volto a ele, como quem volta a um lugar sagrado.
Escrevo porque preciso registrar, preciso entender o que acontece em mim, e ao meu redor enquanto a cor ferve na panela e muda o pano.

Escrevo porque sei que esse saber é maior do que eu. E porque cada vez que escrevo, algo se ajeita aqui dentro.
Há três semanas venho me dedicando a testes. Comecei assim: com pequenos recortes de tecido natural, algodão cru, linho, tricoline. Anoto tudo em dois cadernos. Em um deles prendo os pedaços tingidos, escrevo a planta usada, o mordente, a data. No outro caderno, escrevo um aroma, às vezes, uma frase que me veio no instante em que a cor surgiu.
Uma página diz assim: “verde velho com cheiro de lembrança”.
É que nem tudo se explica, mas pode ser guardado.
Essa semana, recebi a visita da minha sobrinha Gabriela.
Menina curiosa, como eu. Dessas que gostam de colocar a mão na coisa viva.
Trouxe roupas que estavam manchadas e sem graça, precisando de vida nova.
Juntas, criamos um blend de plantas no caldeirão. E eu disse pra ela: essa cor aqui, nunca mais se repete.
Era chá verde, chá preto, folhas de eucalipto, capim-limão, sálvia fresca, sementes de pau-ferro — que, fervidas, soltaram um aroma adocicado, lembrando chocolate com baunilha.
Enquanto as roupas ferviam, o espaço se encheu de perfume.
E eu pensei: estamos tingindo mais do que pano.
Estamos tingindo roupa que cura o corpo e o espírito.

Não tenho usado mais luvas no preparo do tingimento.
Gosto de sentir a resistência do tecido quente, o peso da água impregnada de planta.
Minhas mãos andam manchadas de mordente e tanino, e mesmo que fiquem negras por dias, eu gosto assim.
Porque nesse contato direto, há algo que escapa às palavras: é um tipo de cuidado que vai além da pele, e um silêncio que me organiza.
O antigo mudário da horta, que antes servia só pra guardar sementes, ferramentas e brotos, virou minha oficina de tingimento.
Tem varal com roupas secando, colher de pau, caldeirões de alumínio marcados pelas plantas.
Tem fogão e vidros com plantas secas, além de mordentes. Algo por aqui está se transformando, e eu sei onde quero chegar, mas ainda não é tempo de revelar.
Já faz semanas que venho mexendo na horta, sentindo o que cabe em cada canto.
Ando observando o que cresce com força, o que pede sombra, sol, e quais plantas se relacionam bem. Tem flor nova chegando, tem planta tintória ganhando espaço.
E todo esse movimento do tingimento foi também um chamado para ressignificar esse lugar.

O mais bonito é ver que a terra está respondendo.
Desde que comecei a tingir, minha relação com a horta também mudou, e confesso que estava precisando disso.
Venho revitalizando esse pedaço da chácara com outros olhos, outras intenções.
Ando misturando flores e folhas, semeando plantas tintórias, ervas e plantas medicinais, e permitindo que a terra me diga o que plantar.
Tem algo nascendo…
Mas como toda tintura boa, esse algo, precisa tempo para gestar.
Não se revela no primeiro fervor.
É preciso deixar cozinhar, repousar, assentar.
Talvez seja um projeto. Talvez seja uma nova forma de viver.
Mas sei que vem vindo, com cheiro doce e cor profunda.
O que mais me toca nesse ofício é o que ele tem de invisível.
O tingimento natural é também uma forma de aromaterapia ancestral.
Não dessas que vêm em vidrinhos, mas daquelas que brotam da panela.
O cheiro do eucalipto acordando com o calor.
A sálvia exalando sua medicina silenciosa.
O chá preto puxando a memória do corpo.
E o pau-ferro perfumando o espaço com cheiro de coisa antiga e doce
Respirar esse vapor é um cuidado, pois trabalha em mim em camadas que nem sei nomear.
Vai lavando a pressa, vai limpando a alma.
É espiritual e profundo. Mas não de templo, e sim de quintal.

E tem mais.
Quando mexo meus caldeirões, imagino outras mulheres, de outros tempos, fazendo o mesmo.
Imagino uma roda de tintureiras em algum tempo que a gente esqueceu.
Mulheres cantando, fiando, plantando, secando folhas, tingindo panos que seriam vestidos, mantos e cobertas.
Penso nas mãos das minhas ancestrais, e que talvez nem tenham sido tintureiras, mas usaram as mãos para viver.
E essa lembrança inventada me faz companhia. Porque às vezes a memória que mais nos sustenta não é a que vivemos, mas aquela que pulsa no sangue.
Por isso escrevo.
Porque é assim que dou forma a tudo isso que vai crescendo em mim.
Escrevo para transformar o instante em linguagem.
Escrevo porque sei que o que estou vivendo agora é semente.
E semente precisa de lugar pra ser guardada.
Algumas roupas já secam no varal.
Outras ainda esperam o banho de cor, e a terra está ficando mais bonita.
E eu…estou colorindo por dentro!
Com afeto e cor,
Cláudia Gomes



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