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O tempo da cor: tingimento natural como gesto, memória e rezo

Algumas de vocês que me leem já viram esse assunto aparecer por aqui: o tingimento natural.

Volto a ele, como quem volta a um lugar sagrado.

Escrevo porque preciso registrar, preciso entender o que acontece em mim, e ao meu redor enquanto a cor ferve na panela e muda o pano.



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Escrevo porque sei que esse saber é maior do que eu. E porque cada vez que escrevo, algo se ajeita aqui dentro.


Há três semanas venho me dedicando a testes. Comecei assim: com pequenos recortes de tecido natural, algodão cru, linho, tricoline. Anoto tudo em dois cadernos. Em um deles prendo os pedaços tingidos, escrevo a planta usada, o mordente, a data. No outro caderno, escrevo um aroma, às vezes, uma frase que me veio no instante em que a cor surgiu.

Uma página diz assim: “verde velho com cheiro de lembrança”.

É que nem tudo se explica, mas pode ser guardado.


Essa semana, recebi a visita da minha sobrinha Gabriela.

Menina curiosa, como eu. Dessas que gostam de colocar a mão na coisa viva.

Trouxe roupas que estavam manchadas e sem graça, precisando de vida nova.

Juntas, criamos um blend de plantas no caldeirão. E eu disse pra ela: essa cor aqui, nunca mais se repete.

Era chá verde, chá preto, folhas de eucalipto, capim-limão, sálvia fresca, sementes de pau-ferro — que, fervidas, soltaram um aroma adocicado, lembrando chocolate com baunilha.

Enquanto as roupas ferviam, o espaço se encheu de perfume.

E eu pensei: estamos tingindo mais do que pano.

Estamos tingindo roupa que cura o corpo e o espírito.



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Não tenho usado mais luvas no preparo do tingimento.

Gosto de sentir a resistência do tecido quente, o peso da água impregnada de planta.

Minhas mãos andam manchadas de mordente e tanino, e mesmo que fiquem negras por dias, eu gosto assim.

Porque nesse contato direto, há algo que escapa às palavras: é um tipo de cuidado que vai além da pele, e um silêncio que me organiza.


O antigo mudário da horta, que antes servia só pra guardar sementes, ferramentas e brotos, virou minha oficina de tingimento.

Tem varal com roupas secando, colher de pau, caldeirões de alumínio marcados pelas plantas.

Tem fogão e vidros com plantas secas, além de mordentes. Algo por aqui está se transformando, e eu sei onde quero chegar, mas ainda não é tempo de revelar.


Já faz semanas que venho mexendo na horta, sentindo o que cabe em cada canto.

Ando observando o que cresce com força, o que pede sombra, sol, e quais plantas se relacionam bem. Tem flor nova chegando, tem planta tintória ganhando espaço.

E todo esse movimento do tingimento foi também um chamado para ressignificar esse lugar.



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O mais bonito é ver que a terra está respondendo.

Desde que comecei a tingir, minha relação com a horta também mudou, e confesso que estava precisando disso.

Venho revitalizando esse pedaço da chácara com outros olhos, outras intenções.

Ando misturando flores e folhas, semeando plantas tintórias, ervas e plantas medicinais, e permitindo que a terra me diga o que plantar.


Tem algo nascendo…

Mas como toda tintura boa, esse algo, precisa tempo para gestar.

Não se revela no primeiro fervor.

É preciso deixar cozinhar, repousar, assentar.

Talvez seja um projeto. Talvez seja uma nova forma de viver.

Mas sei que vem vindo, com cheiro doce e cor profunda.


O que mais me toca nesse ofício é o que ele tem de invisível.

O tingimento natural é também uma forma de aromaterapia ancestral.

Não dessas que vêm em vidrinhos, mas daquelas que brotam da panela.

O cheiro do eucalipto acordando com o calor.

A sálvia exalando sua medicina silenciosa.

O chá preto puxando a memória do corpo.

E o pau-ferro perfumando o espaço com cheiro de coisa antiga e doce

Respirar esse vapor é um cuidado, pois trabalha em mim em camadas que nem sei nomear.

Vai lavando a pressa, vai limpando a alma.

É espiritual e profundo. Mas não de templo, e sim de quintal.



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E tem mais.

Quando mexo meus caldeirões, imagino outras mulheres, de outros tempos, fazendo o mesmo.

Imagino uma roda de tintureiras em algum tempo que a gente esqueceu.

Mulheres cantando, fiando, plantando, secando folhas, tingindo panos que seriam vestidos, mantos e cobertas.

Penso nas mãos das minhas ancestrais, e que talvez nem tenham sido tintureiras, mas usaram as mãos para viver.


E essa lembrança inventada me faz companhia. Porque às vezes a memória que mais nos sustenta não é a que vivemos, mas aquela que pulsa no sangue.


Por isso escrevo.

Porque é assim que dou forma a tudo isso que vai crescendo em mim.

Escrevo para transformar o instante em linguagem.

Escrevo porque sei que o que estou vivendo agora é semente.

E semente precisa de lugar pra ser guardada.


Algumas roupas já secam no varal.

Outras ainda esperam o banho de cor, e a terra está ficando mais bonita.


E eu…estou colorindo por dentro!


Com afeto e cor,

Cláudia Gomes

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