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O Fígado Sonha, o Coração Sente, o Ventre Gesta

Já escrevi antes sobre a criatividade. No Ateliê Poético, ela é um tema que me acompanha feito rio — às vezes manso, às vezes turbulento, mas sempre ali, fluindo dentro de mim. E mesmo já tendo falado sobre isso, me pego voltando ao assunto como quem retorna a uma nascente. Porque quanto mais estudo, mais percebo que criatividade não é apenas produzir algo, é um estado de presença. É uma forma de estar inteira na vida.


Esses dias, lendo sobre a Medicina Tradicional Chinesa, encontrei algo que me tocou profundamente. Segundo essa antiga sabedoria, três órgãos se relacionam diretamente com nossa capacidade criativa: o fígado, o coração e o pâncreas. Três centros que cuidam do sonhar, do sentir e do integrar. E entre eles, o que mais me despertou curiosidade foi o fígado.


Na MTC, o fígado é o grande estrategista do corpo. É ele quem vislumbra caminhos, quem organiza a visão do futuro, quem carrega os projetos da alma. Mas o mais fascinante é que, segundo o relógio energético chinês, o fígado tem seu auge de atividade entre 1h e 3h da manhã. Quando li isso, algo em mim se reconheceu. Porque há muito tempo venho despertando nesse horário, quase sempre tomada por uma urgência de escrever, de anotar uma ideia, de dar forma a uma imagem que chega inteira, como se viesse de algum lugar do invisível.


Na visão da MTC, o fígado abriga o Hun, a alma etérea, aquela que guarda nossos sonhos, visões e movimentos criativos mais sutis. É como se, nesse silêncio profundo da madrugada, essa alma encontrasse um portal aberto para se manifestar. Faz sentido que o impulso criativo me visite nesse tempo em que o mundo dorme. É quando a escuta se amplia. É quando o véu entre o visível e o invisível se afina.


E o que acontece quando esse fígado está sobrecarregado? A criatividade se estanca. A raiva contida, o excesso de controle, as frustrações acumuladas, tudo isso enrijece o fluxo que deveria ser livre. Criar, nesse caso, vira esforço. Mas quando o fígado respira, quando o Qi circula com leveza, a alma encontra passagem. As ideias voltam a dançar.


Essa compreensão me levou também ao segundo chacra, o centro energético da criação, morada do prazer, do útero simbólico, das águas internas. E me lembrei de Clarissa Pinkola Estés, que fala sobre o “rio criativo” da mulher. Quando esse rio seca , seja por cansaço, medo, excesso de dar sem receber, adoecemos. 


Criar é um modo de manter esse rio vivo. Com palavras, gestos, silêncios ou tecidos. Criar é recuperar o movimento natural da alma.


E ainda há o coração, imperador do corpo segundo a MTC. É ele quem governa o Shen, a mente sutil. Criar com o coração é criar com alegria. Com presença. É quando sentimos que algo pulsa para ser compartilhado com o mundo. E o pâncreas, com sua função de digestão e integração, representa aquele aspecto mais quieto da criatividade: o cuidado com os detalhes, a nutrição das ideias, a maturação dos processos internos.


Criatividade, percebo, é muito mais do que ter boas ideias. É corpo, é energia, é ritmo interno. E, no fundo, é uma forma de lembrar quem somos.


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Eu poderia seguir por horas, porque esse tema me atravessa com paixão. Mas queria deixar aqui essa partilha, mais uma camada dessa pesquisa que, mais do que um estudo, é um jeito de viver. Criar, pra mim, é ouvir os sinais do corpo, acolher os símbolos que chegam, respeitar os vazios e os transbordamentos. Criar é estar viva.

E se criar é viver, então é preciso cuidar da vida criativa com delicadeza, com presença. Cuidar da criatividade é como cuidar de um jardim invisível: há dias de florescimento e há dias de repouso, e ambos são sagrados. É preciso observar o corpo, esse templo de tantos rios internos e perceber quando o fígado pede leveza, quando o coração clama por alegria, quando o ventre precisa de descanso e acolhimento. O fluxo criativo se alimenta de escuta.


É também preciso proteger o segundo chacra como se protege uma nascente. Criatividade nasce do prazer de viver. Do tempo sem pressa. Do brincar. Das mãos sujas de tinta, terra ou poesia. E também do silêncio, esse solo fértil onde a alma sussurra suas imagens mais profundas.


A parte sutil da criatividade pede cuidado com o que consumimos: palavras, sons, relações, ambientes. Ela se nutre do que é belo, simbólico, verdadeiro. Por isso, bordar, cantar, escrever, cozinhar com intenção, caminhar entre as árvores, ouvir um conto ou tomar um chá em silêncio — tudo isso são formas de regar o território criativo por dentro.


A criatividade não nos exige feitos grandiosos. Ela apenas pede passagem. E quando a escutamos, quando oferecemos espaço para que ela respire, ela nos devolve sentido, alegria e pertencimento. Porque criar é, no fundo, lembrar-se de que estamos vivas.


E que a vida, em si, já é a maior obra que podemos realizar.



Com carinho, 

Cláudia 


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