“Um dia você será velho o bastante para voltar a ler contos de fadas.”
- Claudia Gomes
- 1 de mai.
- 4 min de leitura
Clive Staples Lewis escreveu essa frase como quem deixa uma chave pendurada na entrada da floresta.
Eu a encontrei outro dia, sem querer, e desde então ela não me deixa em paz.
Aliás, talvez a paz nunca tenha sido o propósito dos contos de fadas.
Essa frase me fez parar. E pensar.
Por que seria necessário envelhecer para voltar a essas histórias?
Por que não basta ser criança, ou adulta?
O que há ali que só os mais velhos, os amadurecidos conseguem ver?
Foi com essas perguntas que decidi costurar este texto.
Voltar à origem dos contos, esmiuçar seus símbolos, sentar ao lado do fogo da tradição e escutar, com o corpo todo, as histórias que atravessaram o tempo como raízes subterrâneas da alma humana.
Os chamados “contos de fadas” não foram criados para entreter crianças.
Muito antes de serem moralizados, suavizados ou ilustrados pela Disney, eles foram parte da tradição oral dos povos, contados por anciãos, parteiras, curandeiras e viajantes que transmitiam em palavras os mapas invisíveis da vida.
Pesquisadores modernos descobriram que muitas dessas histórias têm mais de 4 mil anos.
Sim, milênios.

Narrativas como “A Bela e a Fera” ou “João e o Pé de Feijão” circularam entre povos da Idade do Bronze, muito antes de qualquer livro existir.
Eram histórias carregadas de ensinamentos sobre perigo, desejo, morte, sobrevivência, destino.
Eram medicinas ancestrais, feitas de símbolo e silêncio.
O que hoje chamamos de conto de fadas era, na verdade, uma linguagem.
Uma linguagem simbólica, profunda, que fala direto ao inconsciente, o mesmo território onde nascem os sonhos, onde o tempo não é cronológico e onde as verdades caminham com máscaras.
Um sapo que vira príncipe.
Uma menina que desce aos porões da casa da avó e encontra o lobo no lugar errado.
Um espelho que responde.
Uma maçã que envenena.
Nada disso é literal.
Tudo é linguagem simbólica.
Essa linguagem não foi feita para convencer, mas para acordar.
E por isso ela permanece viva, mesmo depois de séculos, mesmo quando esquecemos suas palavras, porque os símbolos vivem em nós.

Marie-Louise von Franz dizia que os contos de fadas são os sonhos coletivos da humanidade.
Eles nos contam como os seres humanos, de todas as épocas e lugares — lidaram com as travessias inevitáveis da vida: o abandono, a transformação, o amadurecimento, a escolha, o retorno.
E quando os ouvimos ou lemos, algo dentro de nós desperta.
Não uma resposta, mas uma lembrança, como se já soubéssemos.
É por isso que, muitas vezes, um conto nos emociona sem explicação.
Porque ele fala com o que não é racional. Ele toca aquela parte de nós que ainda acredita, não em mágica, mas em sentido.
Os contos de fadas carregam um saber que não foi inventado: foi lembrado.
Eles são cordões umbilicais entre o mundo visível e o invisível.
Entre a mulher de agora e a que veio antes dela. Aquela que sabia das ervas, dos ventos, dos sinais, e transmitia tudo isso por meio de histórias contadas junto ao fogo.
E talvez, hoje, num mundo tão cheio de ruídos e distrações, retornar a essa linguagem seja mais necessário do que nunca.
Porque há perguntas que não podem ser respondidas por dados.
Há dores que não se curam com lógica. Há momentos da vida, especialmente os de passagem, que só se atravessam com símbolos na mão.
E os contos de fadas, esses contos antigos, oferecem exatamente isso: um fio. Um mapa simbólico.
Um espelho onde a alma pode finalmente se reconhecer.
Foi isso que Tolkien, do Senhir dos Anéis compreendeu com maestria.
Em seu ensaio “Sobre Histórias de Fadas”, ele afirma que essas narrativas não são escapismo, mas sim uma forma sagrada de olhar para a realidade.
Segundo ele, os contos são instrumentos de “subcriação”, ou seja, criar mundos dentro do mundo, como um reflexo da própria Criação.
E nesses mundos, há sempre três forças fundamentais: a catástrofe, a esperança e o encantamento.
Para Tolkien, os contos de fadas são para adultos.
São para aqueles que já viveram o bastante para entender que a floresta escura é real.
Que há mesmo dragões, prisões invisíveis, perdas irreversíveis.
Mas também há ajudantes inesperados, reinos ocultos, magia possível.
E às vezes, um sopro de beleza pode nos salvar da queda.

Sharon Blackie, em seus estudos sobre o feminino arquetípico, retoma essa visão iniciática dos contos.
Ela mostra que muitos deles contêm as marcas da jornada da mulher, não apenas a menina que foge do lobo, mas a que se perde no bosque para depois renascer anciã.
E Clarissa Pinkola Estés vai além: diz que os contos são remédios da alma, e que escutá-los é lembrar-se de partes perdidas de nós mesmas.
Quando lemos essas histórias com olhos maduros, vemos que elas sempre estiveram falando de nós.
Que toda mulher já foi a que se esqueceu de quem era.
A que se casou com o monstro.
A que precisou descer ao submundo para colher sua própria verdade.
E por isso essa frase me toca tão fundo: “Um dia você será velho o bastante para voltar a ler contos de fadas.”
Porque agora eu entendo.
Não é sobre idade cronológica.
É sobre chegar naquele ponto da vida em que você não quer mais explicações, quer sentido.
Quer alma.
Quer um mapa invisível para atravessar as noites internas que ninguém vê.
Hoje, escrevo esse texto com mãos firmes e um caderno feito à mão.
Como quem planta palavras na terra. Como quem sabe que algumas histórias só nascem no escuro.
E eu volto aos contos de fadas como quem volta ao fogo.
Não para me distrair.
Mas para me lembrar.
Com carinho,
Cláudia
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