top of page

Cântaros da noite: escrever como quem planta

Trago novamente esse tema ao Ateliê Poético porque pressinto que não sou a única a ser acordada por algo maior que o cansaço.

Há muitas de nós, mulheres,  atravessando noites em claro,

não por insônia comum,

mas por gestação de sentido.

Acordamos sem saber por quê.

Mas sentimos, e sabemos. 

Algo nos chama da escuridão.

Um nome ainda sem forma, uma história que ainda não nasceu,

um fio que precisa ser puxado antes que desapareça para sempre.

É nesse espaço entre o mundo que dorme e a alma que vigia que meu livro está sendo escrito.

Um livro chamado A Senhora do Bosque.

Não é uma obra planejada, nem linear.

É uma travessia.

Um conjunto de contos-poço, onde cada narrativa mergulha em um território invisível da alma feminina.

Escrevo para mulheres que estão diante de limiares, 

sobretudo o da menopausa,

esse rito esquecido, temido, e no entanto sagrado.


Escrevo como quem escava.

Como quem se deita no chão da floresta para ouvir o que as raízes têm a dizer.

Esse livro é feito de histórias, de visões, de madrugadas úmidas de pensamento.

Mas também de gestos e rituais. 

Ele está sendo escrito à mão, em cadernos que também foram feitos à mão por minha sobrinha artista, que os pintou e bordou artesanalmente.

Cada página é uma oferenda.

Cada palavra escrita é um gesto de permanência num tempo que tudo quer acelerar.

Para mim, escrever à mão é um ato de resistência.

Em um mundo cada vez mais digitalizado, veloz, eficiente, algorítmico, me recuso a abandonar práticas que mantêm minha inteligência natural desperta.

Porque escrever à mão é diferente.

Tem corpo.

Tem pausa.

Tem respiração.

Cada letra desenhada é como um passo na terra molhada, deixa rastro, exige presença, carrega peso e leveza ao mesmo tempo.

Não se escreve à mão correndo.

É preciso sentar, sustentar a palavra, suportar o silêncio entre uma frase e outra.

Não há correção automática, nem atalhos. A mão precisa sentir.

A alma precisa habitar o gesto.

O papel não é uma tela, é pele.

E há algo sagrado em encostar a caneta sobre ele como quem toca um mundo em branco.

É um encontro.

A escrita à mão tem ritmo de coração, às vezes acelera, às vezes vacila, mas nunca mente.

O que escrevo com as mãos não é o mesmo que digito com os dedos.

Quando escrevo no papel, escuto coisas que o teclado silencia.

Minhas palavras ganham densidade, hesitação, curva, suor.

E no traço torto de uma letra, às vezes descubro a verdade inteira.

Em um mundo que valoriza o rápido, o automático, o copiável,

escrever à mão é um ato de presença radical.

Uma forma de resistir à desconexão, e recuperar a escuta.

De lembrar que somos feitas de carne, tinta e sopro.


E talvez por isso A Senhora do Bosque precise nascer assim, 

devagar, à mão, com manchas, falhas, silêncios.

Porque é um livro que não busca perfeição. Busca verdade. Busca raiz.


E raízes não crescem no digital.


Elas pedem terra, e tempo. Mãos que saibam tocar a vida com delicadeza.


Quando escrevo com a caneta, o pensamento anda devagar.


E nesse ritmo, algo mais profundo pode emergir.

As palavras não vêm como ideias, vêm como sensações, e passam pelo corpo antes de chegar ao papel.


E isso, que pode parecer ancestral ou até primitivo, é, para mim, absolutamente necessário neste tempo.

Porque estamos perdendo algo precioso: a escuta interna.


A relação com o invisível.


A lentidão fértil da criação verdadeira.

Escrevo como quem planta.

Como quem cuida.

Como quem retorna.

E cada palavra é um cântaro cheio, carregado de imagens, símbolos e memórias.

Visitas do bosque interno, onde mora essa mulher sem nome que me acompanha, aquela que surge entre as folhas e me sussurra contos enquanto o mundo dorme.


Não sei quando esse livro estará pronto, mas sei que ele está vivo.


E que nasceu da necessidade de lembrar, a mim mesma e às outras, que ainda podemos escrever com as mãos, dormir com cadernos ao lado da cama, acender a luz por dentro e escolher, no silêncio da madrugada, ser fiéis ao que é essencial.



Por Claudia Gomes

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
bottom of page