Cântaros da noite: escrever como quem planta
- Claudia Gomes
- 24 de abr.
- 3 min de leitura
Trago novamente esse tema ao Ateliê Poético porque pressinto que não sou a única a ser acordada por algo maior que o cansaço.
Há muitas de nós, mulheres, atravessando noites em claro,
não por insônia comum,
mas por gestação de sentido.
Acordamos sem saber por quê.
Mas sentimos, e sabemos.
Algo nos chama da escuridão.
Um nome ainda sem forma, uma história que ainda não nasceu,
um fio que precisa ser puxado antes que desapareça para sempre.
É nesse espaço entre o mundo que dorme e a alma que vigia que meu livro está sendo escrito.
Um livro chamado A Senhora do Bosque.
Não é uma obra planejada, nem linear.
É uma travessia.
Um conjunto de contos-poço, onde cada narrativa mergulha em um território invisível da alma feminina.
Escrevo para mulheres que estão diante de limiares,
sobretudo o da menopausa,
esse rito esquecido, temido, e no entanto sagrado.

Escrevo como quem escava.
Como quem se deita no chão da floresta para ouvir o que as raízes têm a dizer.
Esse livro é feito de histórias, de visões, de madrugadas úmidas de pensamento.
Mas também de gestos e rituais.
Ele está sendo escrito à mão, em cadernos que também foram feitos à mão por minha sobrinha artista, que os pintou e bordou artesanalmente.
Cada página é uma oferenda.
Cada palavra escrita é um gesto de permanência num tempo que tudo quer acelerar.
Para mim, escrever à mão é um ato de resistência.
Em um mundo cada vez mais digitalizado, veloz, eficiente, algorítmico, me recuso a abandonar práticas que mantêm minha inteligência natural desperta.
Porque escrever à mão é diferente.
Tem corpo.
Tem pausa.
Tem respiração.
Cada letra desenhada é como um passo na terra molhada, deixa rastro, exige presença, carrega peso e leveza ao mesmo tempo.
Não se escreve à mão correndo.
É preciso sentar, sustentar a palavra, suportar o silêncio entre uma frase e outra.
Não há correção automática, nem atalhos. A mão precisa sentir.
A alma precisa habitar o gesto.
O papel não é uma tela, é pele.
E há algo sagrado em encostar a caneta sobre ele como quem toca um mundo em branco.
É um encontro.
A escrita à mão tem ritmo de coração, às vezes acelera, às vezes vacila, mas nunca mente.
O que escrevo com as mãos não é o mesmo que digito com os dedos.
Quando escrevo no papel, escuto coisas que o teclado silencia.
Minhas palavras ganham densidade, hesitação, curva, suor.
E no traço torto de uma letra, às vezes descubro a verdade inteira.
Em um mundo que valoriza o rápido, o automático, o copiável,
escrever à mão é um ato de presença radical.
Uma forma de resistir à desconexão, e recuperar a escuta.
De lembrar que somos feitas de carne, tinta e sopro.

E talvez por isso A Senhora do Bosque precise nascer assim,
devagar, à mão, com manchas, falhas, silêncios.
Porque é um livro que não busca perfeição. Busca verdade. Busca raiz.
E raízes não crescem no digital.
Elas pedem terra, e tempo. Mãos que saibam tocar a vida com delicadeza.
Quando escrevo com a caneta, o pensamento anda devagar.
E nesse ritmo, algo mais profundo pode emergir.
As palavras não vêm como ideias, vêm como sensações, e passam pelo corpo antes de chegar ao papel.
E isso, que pode parecer ancestral ou até primitivo, é, para mim, absolutamente necessário neste tempo.
Porque estamos perdendo algo precioso: a escuta interna.
A relação com o invisível.
A lentidão fértil da criação verdadeira.
Escrevo como quem planta.
Como quem cuida.
Como quem retorna.
E cada palavra é um cântaro cheio, carregado de imagens, símbolos e memórias.
Visitas do bosque interno, onde mora essa mulher sem nome que me acompanha, aquela que surge entre as folhas e me sussurra contos enquanto o mundo dorme.
Não sei quando esse livro estará pronto, mas sei que ele está vivo.
E que nasceu da necessidade de lembrar, a mim mesma e às outras, que ainda podemos escrever com as mãos, dormir com cadernos ao lado da cama, acender a luz por dentro e escolher, no silêncio da madrugada, ser fiéis ao que é essencial.
Por Claudia Gomes
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