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Sonho de chão, parede e cores


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Sempre gostei de dizer que a vida se faz no simples, nas tarefas pequenas, no que muitos deixam passar sem notar. É no cheiro do café coado no pano pela manhã, é no chá de capim-limão que acalma as tardes, é na panela fumegante que solta o perfume das folhas e raízes que se entregam em cor. Assim também se fazem os sonhos: com gestos miúdos, com paciência, com olhos atentos às coisas que parecem comuns, mas guardam um poder imenso.


Enquanto o corpo se transformava e a menopausa me pedia novas escutas, fui percebendo que algo também germinava por dentro. Não me assustei. Sempre fui amiga do tempo, das curvas da estrada, das trocas de rumo. Não sou pedra dura, sou barro maleável, água que se acomoda e aprende outro caminho. E foi nessa fase que uma mulher nova nasceu em mim — mais inteira, mais livre, mais decidida a dar passagem ao que sempre me habitou: a arte, a criação, o ofício paciente das mãos.


O projeto que agora floresce não nasceu pronto. Foi como horta recém-revirada: precisei tirar as ervas daninhas, afofar a terra, esperar a chuva vir no seu tempo. Foram quase dois anos de gestação, de estudo, de prática, de contas refeitas, de tecidos mergulhados em cores, de folhas e sementes transformando água em pigmento. Quantas vezes errei a medida, quantas vezes voltei ao início, quantas noites dormi pensando no que poderia dar certo. Mas é assim mesmo: quem cozinha sabe que cada receita precisa de tentativas até alcançar o ponto.


Ontem, ao ver as primeiras contratações se acertando, senti o coração bater ligeiro. Foi como voltar à infância e ganhar um presente inesperado. Um frio correu no estômago, borboletas voaram dentro de mim, e naquela noite quase não preguei os olhos. Caminhei por dentro do que ainda é sonho, vi as paredes erguidas, senti o cheiro da madeira fresca, ouvi o som das panelas tilintando no fogão, imaginei tecidos coloridos estendidos no varal, tintas vivas fervendo na panela de ferro, ervas secas guardadas em potes de vidro. Toquei com os olhos da imaginação aquilo que em breve vou tocar com as mãos. Há detalhes que só eu enxergo agora, porque ainda pertencem ao terreno da espera, mas já são tão reais quanto o pão quente sobre a mesa.


Este espaço que nasce não será apenas meu. Será casa para encontros, rodas, conversas, histórias ao redor da mesa, vivências de arte que se entrelaçam com a vida. Será lugar de aprender com as plantas, com a cor que escorre da casca, com o fio que se deixa bordar, com a palavra que se solta no papel. E nasce justamente agora, na primavera, porque nada poderia ser diferente. Primavera é tempo de broto novo, de cheiro fresco, de vida que insiste em se mostrar. É tempo de quintal verdejando, de flores miúdas que ninguém plantou, mas que insistem em florir. Com esse projeto eu também renasço, como renasce a terra depois da chuva.


Não revelo ainda os nomes e nem todos os detalhes. Guardo-os comigo, como quem guarda um doce em prateleira alta, à espera da hora certa de oferecer. Quero que cada passo seja partilhado com quem me acompanha, devagar, tijolo por tijolo, bordado por bordado, panela por panela. Porque é assim que se constroem os sonhos: devagar, com mãos pacientes, com fé no invisível que nos guia.


Se me perguntarem o que mais me sustenta neste caminho, eu direi: o gosto pela simplicidade, o amor pelas coisas pequenas, a coragem de nunca ter negado uma transformação. Sempre vivi de mudanças, e foi isso que me deu uma vida tão rica e criativa. Nunca temi trocar de rumo, nunca temi me reinventar. Aprendi que é na flexibilidade que mora a força verdadeira.


Hoje sigo feliz, como quem prepara uma mesa simples e vê nela banquete. Sigo com a certeza mansa de que logo abrirei as portas e poderei compartilhar tudo o que já sinto aqui dentro. E quando esse dia chegar, haverá chá servido em bule de esmalte, café forte no coador de pano, tecidos coloridos estendidos ao vento, cores fervendo em panelas, histórias contadas entre bordados e risos.


E eu estarei inteira, pronta, renascida, vivendo de mãos dadas com esse sonho que nasceu comigo e agora encontra sua hora de florescer.


Com afeto e um certo friozinho na barriga, 

Cláudia Gomes

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