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Quando o Rio da Criatividade Escurece

Semana passada voltei ao capítulo dez de Mulheres que Correm com os Lobos. Volto sempre que preciso de uma orientação interna mais funda, dessas que não se aprendem em livro nenhum, mas que os livros certos ajudam a reabrir.

Há muita gente estudando esse livro mundo afora. Ele se tornou um destes territórios por onde todos passam e deixam suas marcas. Mesmo assim, para mim ele nunca perde a força. Não sinto desgaste. Sinto raiz. Toda vez que retorno, algo se move por dentro como quem abre uma porta antiga e deixa entrar um sopro que faltava.



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Esse capítulo em especial fala do nosso rio criativo. Não daquela criatividade bem-acabada que aparece nas vitrines, mas da outra. A que nasce no subterrâneo. A que corre por dentro mesmo quando estamos cansadas, tristes, frustradas ou sem rumo. Às vezes esse rio está vibrante. Outras vezes está escuro, pesado, cheio de detritos que não sabemos de onde vieram. Clarissa descreve esse momento com uma precisão íntima. E eu reconheço cada linha porque já vivi, e porque tantas mulheres também viveram.


O rio escurece quando acreditamos na velha promessa do “quando eu tiver tempo”. Essa promessa parece inocente, mas é miragem que engana bem. É sempre mais fácil acreditar que criaremos amanhã. Que faremos depois. Que um dia a vida abrirá espaço para o gesto criador. Mas ela não abre sozinha. Não abre nunca se não dermos o primeiro passo. A cada adiamento, o rio perde um pouco da sua força.


A mulher que cria, seja com linhas, tintas, fios, palavras ou silêncio, sabe como é perder-se no meio das próprias ideias. Chega um momento em que tudo desanda. Ou porque há tarefas demais. Ou porque tentamos agradar demais. Ou porque exigimos de nós mais do que qualquer alma deveria aguentar. A psique feminina guarda uma força masculina interna que pode ser aliada ou inimiga. Quando essa força está adoecida, ela nos cobra perfeição, impõe metas impossíveis e mina nossa coragem. Pouco a pouco, a vida criativa se estreita e dói.


Mas existe também um animus, a força masculina interna, saudável. Uma força que organiza, ampara, sustenta. Quando esse lado está vivo, a mulher cria com firmeza. Não cria para provar nada. Cria porque precisa. Porque aquilo é alimento, raiz e casa.


Há um trecho do capítulo que sempre me toca. A história da menina dos fósforos. A fantasia que aquece por segundos e depois abandona no frio. Quantas vezes buscamos esses pequenos brilhos que só distraem. Rolamos telas, observamos vidas alheias, sonhamos com futuros que não chegam. Tudo isso é fogo frágil. O que sustenta de verdade é o fogo interno. Aquele que ilumina por dentro e nos devolve ao que somos.


E então aparece a figura da velha sábia. A guardiã da alma. A que embala a mulher cansada e a ensina a descansar de um jeito, quase esquecido. Clarissa fala desse embalo como cura. E é mesmo. Descansar profundamente, com honestidade, com entrega, é o que renova a chama da criação. Não é desistir. É preparar o terreno.



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A verdade é simples e firme. O bloqueio criativo não é fracasso. É ciclo, estação, e inverno. Não há flores na geada, mas há sementes. E elas conversam com a terra em silêncio. A mulher criadora precisa aprender esse silêncio. Precisa olhar em volta. Precisa respirar com mais presença. Precisa enxergar de novo o que está diante dela. A vida real, não a imaginada.


E enquanto escrevo estas linhas, penso no meu próprio rio. Ele tem corrido bonito nas últimas semanas. Leva cores, ideias, projetos e sonhos antigos que esperaram anos para ganhar forma. Mas ao mesmo tempo o corpo tem pedido repouso. Há um cansaço que não é preguiça, não é falta de vontade, não é desistência. É o cansaço da menopausa me chamando pelo nome. Os hormônios dançam suas piruetas silenciosas e o corpo nem sempre acompanha esse balé. Há dias em que acordo com vontade de criar e trabalhar o dia inteiro, mas o corpo pede quietude. Há tardes em que o tear me chama, mas os músculos dizem que hoje não.


É um limite que não aprendi sozinha. É um aprendizado que chega com humildade. E sinto que este capítulo também fala disso. Do corpo que precisa ser ouvido. Da alma que não floresce quando está exaurida. Da criação que não prolifera quando violentamos nossos próprios limites. Cora Coralina sempre dizia que a vida é feita de muitas colheitas. Umas fartas e outras minguadas. E que nenhuma define quem somos.


Sinto isso profundamente agora.

Há dias de rio caudaloso, outros de rio tímido, e ambos têm valor.


Nessas horas me sento na beira do meu próprio rio. Não para exigir, mas para escutar. Escutar o corpo que muda. Escutar a alma que pede mais silêncio. Escutar o tempo que não se apressa por ninguém. A vida criativa não se sustenta apenas com vontade. Ela se sustenta com cuidado. Com respeito ao ciclo que nos rege. Com essa sabedoria que diz que nada floresce todos os dias. Nem a terra. Nem o corpo.


Fecho o livro e respiro fundo. Olho para dentro e percebo que, mesmo cansada, sigo criando. Não com a pressa do mundo, mas com o ritmo possível. E talvez seja isso que o capítulo dez queria me lembrar. Que o rio não precisa rugir para existir. Ele só precisa continuar correndo.


Porque a água que flui, por menor que seja o movimento, sempre encontra seu caminho.

E nós, mulheres criadoras, também.






Com afeto e muito carinho,

Cláudia Gomes

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