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O que os griôs ainda têm a nos contar?

Tenho andado em silêncio dentro de mim, ouvindo ecos do passado.


Essa semana, mergulhei numa dessas pesquisas que não começam num livro, mas numa pergunta que brota do cotidiano: quem são os que guardam as histórias do mundo?


Essa pergunta me levou até os griôs.


E foi como abrir uma porta para um território que, embora não tão conhecido, me pareceu imediatamente familiar.

Os griôs são mestres da palavra oral.


Vindos da África Ocidental, principalmente de povos como os Mandingas, Fulas, Bambaras, são homens e mulheres que, desde muito cedo, recebem o ofício de guardar e transmitir a memória de seu povo.


Memória aqui não é só lembrança do passado. É linhagem, sabedoria coletiva, rituais, genealogias, canções, provérbios, histórias de origem, conselhos que não se encontram em manual nenhum.


Na tradição mandingue, o griô é chamado djéli.



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A palavra significa algo como “sangue da palavra” ou “aquele que transporta a voz dos ancestrais”.

Eles não apenas contam histórias. Eles são as histórias, encarnam uma tradição que vive na palavra dita, no ritmo da fala, no corpo que se move e no olhar que alcança.


Griô não se forma em curso nem em escola. Ele ou ela é reconhecido pela comunidade. O saber se dá na escuta, na convivência, no tempo.


Em muitas culturas africanas, quando se deseja conhecer a história de uma família ou vila, não se procura um arquivo. Procura-se um griô.


É ele quem sabe de cor e por dentro os nomes, os feitos, as relações, os aprendizados, não como uma biografia fria, mas como narrativa viva, costurada com emoção, simbolismo e presença.


Essa memória é passada de geração em geração, muitas vezes dentro de uma mesma linhagem de griôs.

Eles acompanham casamentos, nascimentos, ritos de passagem, mediações de conflitos.


São, de certa forma, tecelões sociais, entrelaçando passado e presente para que um povo não se perca de si.

O mais belo é que essa prática resiste.


Ainda hoje, em aldeias do Mali, do Senegal, da Guiné, há griôs que tocam seus instrumentos, como a kora, o balafon, o ngoni, e cantam histórias de seus ancestrais, com a mesma firmeza de quem sabe que a palavra, quando partilhada com consciência, constrói pertencimento.


Enquanto lia sobre isso, pensei: quantas vezes, na nossa cultura, deixamos a palavra escorrer pelos dedos, sem escutá-la direito?


E quantas vozes deixamos de ouvir por não reconhecê-las como portadoras de saber?


No Brasil, a presença griô também floresceu, ainda que por caminhos sinuosos.


Mestres da cultura popular, como as parteiras, raizeiros, rezadeiras, cantadores, são herdeiros dessa tradição oral.

Eles não se chamam griôs, necessariamente, mas exercem um papel muito semelhante: o de manter viva a identidade de um povo através do saber compartilhado em roda, em história, em corpo, em gesto.


Muitos deles viveram à margem dos sistemas formais de ensino, mas foram e são os verdadeiros educadores de suas comunidades.


Com um canto, uma fala mansa, um ensinamento contado ao pé do fogão, muita coisa foi passada adiante, inclusive o que não coube nos livros de história.


O que me encanta é que a figura do griô não está presa a uma geografia.

Ela aparece em muitas culturas, com outros nomes e trajes.

Na Grécia antiga, por exemplo, havia os aedos, poetas que recitavam de memória, as histórias dos deuses e heróis, como Homero e sua Odisseia.

Nas culturas celtas, os bardos guardavam genealogias e mitos através de canções.


Entre povos indígenas, os anciãos e pajés são também portadores da palavra ancestral, que falam com a floresta, com os espíritos, com o tempo.

Cada qual a seu modo, compartilha histórias como quem sopra vida no mundo.


Claro, cada cultura tem seu ritmo, sua música, seu modo de narrar.

Mas em todas elas, a oralidade é mais do que forma: é presença, é relação.


Quando alguém narra uma história com o corpo, com a voz, com alma, algo se acende no outro.


Não é só informação que se transmite. É mundo. É afeto. É memória.


Fiquei pensando o quanto a nossa vida moderna tem silenciado esses saberes.

A rapidez, os algoritmos, o excesso de dados.


Mas há uma sede, eu sinto. Por escuta, por palavra com sentido, por memória que não se apaga.


Talvez por isso, a figura do griô ressurja com tanta força simbólica.


Ela nos lembra que ninguém vive só de futuro.


A gente precisa de raiz. De história contada no tempo da escuta.

De uma voz que não grita, mas que nos chama de volta para casa.

Eu sigo ouvindo.

Com o coração aberto, com vontade de aprender mais sobre essas vozes que, mesmo de tão antigas, seguem tão vivas.

Não como uma estudiosa, mas como alguém que sente que há algo precioso guardado em cada história contada devagar.


E você? Já teve o privilégio de escutar um griô, mesmo sem saber que era um?



Com afeto, 

Cláudia Gomes


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