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O Tempo que Escorre e o Tempo que se Ordena

Hoje, enquanto colhia couves no quintal, pensei no tempo. O tempo da gente parece muito com o da horta. Se deixo solto demais, vira matagal; se aperto demais, sufoco as plantas. É preciso cuidar, mas também saber esperar.



Eu sou dessas que acordam já com a cabeça fervilhando de ideias. Se pudesse, começava dez coisas de uma vez só. Um pedaço de mim corre para o ateliê, outro lembra da panela no fogo, outro quer mexer nas plantas, outro me cutuca lembrando dos atendimentos, e ainda sobra energia para pensar no meu novo ateliê que está sendo levantado por aqui. É como feira de sábado: todo mundo me chamando ao mesmo tempo. Se atendo a todos, viro redemoinho.


Já vivi esse desatino e sei o preço. Lembro de uma vez que entrei no ateliê para pintar um oráculo e esqueci do feijão no fogo. Quando senti o cheiro, já não tinha mais jeito. Ficou preto no fundo da panela. Outro dia, estava tingindo tecidos e me empolguei tanto que perdi a hora do almoço. Só percebi quando o estômago começou a roncar, e mesmo assim demorei a sair, porque as cores estavam se abrindo na água como se fossem mágica.


Essas distrações me fizeram entender que, se não organizo meus dias, me perco de mim mesma. Passei a dividir o tempo como quem reparte sementes: o dia do tingimento, o dia do bordado, o dia da escrita, o dia da horta. Não por mania de controle, mas porque, sem algum rumo, minha vida vira poeira levada pelo vento.


Um dia li em Byung-Chul Han que a vida contemporânea se fragmenta como vidro partido. Reconheci de imediato. Quantas vezes já me senti estilhaçada, tentando segurar tudo ao mesmo tempo? Entendi, então, que organizar o tempo é como catar grãos de feijão: separa-se o bom do ruim, o urgente do adiável, o que é essencial do que é só distração.


Mas confesso que nem sempre gosto dessa disciplina. A arte não nasce com hora marcada. Octavio Paz dizia que o tempo criativo é circular, como fogo que arde para todos os lados. E é bem isso. Às vezes entro no ateliê e esqueço até de cozinhar. Fico lá até que a criação termine, até que o invisível se faça forma.


E a maravilhosa Virginia Woolf escreveu uma vez que toda mulher precisa de um teto só seu para criar. Eu digo que precisa também de um tempo só seu. Tempo que não seja roubado pelas urgências, nem picotado pelas exigências. Esse tempo é raro, mas é o que sustenta a alma.


E vejo que não é só comigo. Toda pessoa hoje sente essa luta com o relógio. O mundo pede eficiência como se fôssemos máquinas. Mas não somos. Nosso tempo é o do pão que cresce devagar, da semente que rompe a terra no silêncio, do bordado que pede ponto por ponto até mostrar sua imagem.


Organizar-se é preciso, sim. Mas não com dureza. É como podar uma roseira: corta-se não para matar, mas para que cresça mais forte. E às vezes é bom deixar que ela se espalhe pelo muro, florescendo onde bem entende.


Eu me lembro do Nietzsche que dizia que é preciso ter caos dentro de si para dar à luz uma estrela dançante. Eu acredito. O caos é fértil. Mas se não o cuidamos, ele vira cansaço. Por isso cuido do meu tempo como cuido da horta. Preparo a terra, retiro o excesso, rego com calma. Mas não mando na chuva, nem no sol. Há dias de fartura, há dias de estiagem.


E nesse vai e vem, aprendi que viver é se mover entre dois tempos: o que escorre e o que se ordena. Um me dá raízes, o outro me dá asas. Entre eles sigo fiando meus dias, com seus tropeços, seus feijões queimados e suas madrugadas de criação. Talvez seja esse o segredo: aceitar que o tempo não se domina, mas se cultiva. Como um jardim, como uma vida.


Com afeto,

Cláudia Gomes

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