
Quando a Natureza Vira Cor
- Claudia Gomes

- 24 de jul.
- 4 min de leitura
Hoje escrevo como quem senta na soleira da porta, com as mãos ainda manchadas de cor, o cheiro de folha fervida nos cabelos e o coração cheio de uma alegria gostosa — daquelas que não se explicam com pressa. Uma alegria de quem reencontra um caminho que já estava escrito, mas que só agora começa a trilhar com os pés no chão e os olhos encantados.
Faz anos que venho namorando o universo do tingimento natural. Um namoro tímido, de quem se aproxima com curiosidade e respeito, mas sem coragem de se entregar por completo. Já fiz algumas tentativas, pequei pelas pressas, errei um bocado, acertei aqui e ali, fiz cursos, li, assisti, sonhei. Mas sempre havia algo mais urgente me chamando. O tempo passava, e o projeto de tingir com as plantas ia sendo empurrado para o canto da estante, junto com os tecidos guardados, os livros sobre pigmentos, os planos para o ateliê que ainda estava por nascer.
Até que um dia, sem grandes alardes, decidi: agora vai. Porque entendi que esperar o momento ideal é, muitas vezes, o modo mais sutil de desistir de um sonho. E sonhos como esse, que têm cheiro de terra molhada, cor de folha fervida e textura de algodão cru —não devem ser deixados de lado.
Foi assim que, na semana retrasada segui rumo a Brasília com o coração aberto para aprender com quem já caminha por essa trilha. Fui beber da fonte com Maibe Maroccolo, da Mattricaria, e com John Bermond, dois pesquisadores apaixonados pela tinturaria botânica, generosos no saber e no fazer. O curso foi uma experiência deliciosa: um equilíbrio entre ciência e sensibilidade, precisão e poesia. Lá, entendi que sim, há complexidades no processo. Mas o “bicho-papão” era menor do que eu imaginava. Talvez o mais difícil fosse justamente isso: começar.
Voltei para casa com o corpo cansado e a alma luminosa. Decidi transformar meu mudário, aquele espaço rústico onde cultivo minhas plantas, em um pequeno laboratório de cor. Simples, com chão de pedrinhas, vento nas frestas e paredes feitas de sombrite e sonhos. E comecei como pude: com um fogão elétrico baratinho, panelas que fui reaproveitando, tecidos que já tinha guardado. Os materiais ainda são poucos, os improvisos são muitos. Mas há algo de profundamente verdadeiro em fazer assim, com o que se tem. E o que se tem é muito, quando se coloca o coração junto.
Descobri, nesses dias de imersão, que o tingimento natural não é apenas uma técnica: é uma forma de estar no tempo. As plantas não têm pressa. A água precisa esquentar devagar. O tecido precisa absorver aos poucos. A cor precisa nascer no ritmo da natureza; e, às vezes, ela nasce sutil, quase tímida, como quem pede silêncio para se revelar.
Enquanto mexia nas plantas, fui sendo invadida por memórias. Lembrei da minha avó materna, que viveu parte da vida com fogão a lenha. Ela não foi tintureira, mas sua vida era profundamente artesanal. Costurava roupas, fazia crochê, sovava o pão, preparava doces no tacho, produzia até sabão com as próprias mãos. Tudo era feito no compasso da alma. Era uma mulher das mãos. E foi com essas mãos que ela deixou rastros no mundo. Rastros que hoje, de alguma forma, reencontro nos meus próprios gestos.
Senti saudade. Saudade da presença dela e também de um tempo mais lento, mais próximo da terra, mais simples e mais essencial. Um tempo em que fazer algo com as mãos era também uma forma de rezar, de conversar com o mundo, de oferecer cuidado.
Hoje mesmo, enquanto tingia folhas de erva-baleeira, planta que cresce aqui no meu quintal, com suas folhas cheirosas e propriedades medicinais, fui tomada pela lembrança de uma história que ouvi certa vez: a de Fanny Louisa Calder, uma educadora inglesa do século XIX. Fanny acreditava que ensinar a uma mulher a arte de tingir com plantas era mais do que uma instrução prática, era um ato de emancipação. Ela criava oficinas comunitárias onde mulheres sem recursos aprendiam a produzir seus próprios pigmentos e tecidos, como forma de sustento, dignidade e expressão.
Porque sim, tingir é também um modo de enxergar a vida com outros olhos. Quando vemos o lilás brotar da casca do abacate, ou o vermelho surgir das flores de hibisco, é como se a natureza dissesse baixinho: a beleza está aqui, basta prestar atenção.
As plantas têm cor, têm cheiro, têm alma. E quando nos colocamos a trabalhar com elas, não é só técnica que se aprende, é escuta, é paciência, é reverência. A tinturaria natural nos ensina a observar a mudança de cor na água como quem observa o céu ao entardecer. Nada acontece num estalo. Tudo se dá no tempo certo. E o tempo certo, quase sempre, é mais lento do que o nosso desejo.
Esse aprendizado, com as plantas, com os tecidos, com as falhas e acertos - faz parte de um projeto maior, que ainda vai amadurecer. Tenho sonhado com vivências criativas aqui na chácara, com mulheres reunidas em torno das panelas, partilhando histórias, preparando tintas, escrevendo suas memórias, tingindo não só os tecidos, mas também as dores, os ciclos e os recomeços. Vejo varais cheios de cores dançando no vento, e escuto os risos se misturando ao som da água fervendo. Mas esse ainda é um projeto em gestação. O tempo dele vai chegar.
Por ora, fico com a alegria de ter começado. E talvez eu só tenha escrito tudo isso para te dizer uma coisa simples: não espere tudo estar perfeito para começar o que te chama. Comece com o que tiver, ainda que sejam sobras de tecido, uma panela velha e uma vontade no peito. A natureza ensina o resto.
Com afeto, saudade e um tanto de cor nos dedos,
Cláudia Gomes









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