top of page

O fuso que me fia

Ontem fui buscar um pacote na casa da minha filha. Aqui, onde vivo no campo, o correio não chega. Precisei atravessar a estrada estreita que corta plantações de um verde quase infinito. Passo por cavalos pastando, por gados dispersos, por um campo que parece costurado com o céu. É uma estrada que conheço bem, que me conhece também; cada vez que passo por ela, sinto que estou voltando para casa, mesmo quando estou saindo.


Dessa vez, voltei com algo muito especial: o meu fuso.


Veio simples, dentro de uma caixa de papelão. O fuso, a lã cardada e, junto com eles, uma sensação de retorno; como se algo que sempre me acompanhou em silêncio tivesse finalmente tocado a campainha da minha alma.


Abri devagar, mas emocionada, e o que senti primeiro foi o cheiro da lã. Um perfume delicado, quase tímido, lembrando sabão de avó e vento seco de campo. Toquei aquela lã clara, fina e fofa, que parecia respirar entre meus dedos.


A textura macia me deu vontade de abraçar — não por afeto bobo, mas por reconhecimento. Era como se eu tivesse encontrado um pedaço da minha própria memória sem nome.


Há anos venho ensaiando esse desejo de fiar; um desejo que mora em mim como certos sonhos da infância: não são urgentes, mas também nunca vão embora. Às vezes, a vida acelera tanto que a gente esquece de ouvir essas vontades lentas. Mas elas seguem ali, esperando um tempo mais maduro. Um tempo de dentro.


E agora esse tempo chegou.


Não sei explicar muito bem por quê. Talvez seja pelo projeto de arte têxtil que ando costurando por dentro há meses. Talvez por causa desse chamado que sinto há tanto, como se uma linha invisível me puxasse na direção das mulheres que vieram antes de mim. Ou talvez simplesmente porque era a hora de aprender algo que não se aprende só com as mãos.


Segurei o fuso pela primeira vez como quem pega uma herança delicada. Uma ferramenta ancestral feita de madeira e silêncio. É só um bastão com um disco na base, mas também é muito mais. Em muitas culturas antigas, o fuso era símbolo de poder feminino. Era com ele que as mulheres fiavam a lã, mas também o destino, as histórias, a travessia da vida para a morte. Era com ele que se girava o mundo, mesmo que ninguém notasse.


Alí mesmo, no chão da sala, a luz baixa, a casa adormecida ao redor, e fui tentar fiar. De início, a lã se soltava, escapava, se partia. O fuso girava demais ou de menos, e eu ria sozinha, porque parecia fácil, e não era. Mas também não era impossível; era só uma dança nova entre mãos e tempo.


Fiar exige um jeito que não se força. É mais uma escuta do que um movimento. É preciso sentir a lã, respeitar seu tempo de torção, descobrir o ponto certo entre o puxar e o soltar. E aceitar que os primeiros fios nascem tortos, como as primeiras palavras de um novo idioma.



ree

Enquanto eu girava o fuso, algo começou a girar dentro de mim também. Não sei explicar o que, talvez uma lembrança que não tem nome; como se minhas mãos soubessem algo que minha mente ainda não entendeu. E, nessa tentativa de fazer um fio de lã, eu também fui fiando um fio meu. Um fio de dentro, daqueles que ligam a alma ao corpo.


Por isso decidi reler A Tecelã, de Barbara Black Koltuv. É um livro que fala da jornada de individuação e arquetípica da mulher que se transforma; que mergulha em si mesma e vai encontrando as figuras que a habitam — a mãe, a velha, a sombra, a sabedoria. Esse livro já me tocou antes, mas agora sinto que ele vai me acompanhar de outro jeito. Porque agora minhas mãos estão envolvidas no processo. E talvez fiar com as mãos ajude a compreender coisas que a cabeça sozinha não alcança.


Meu projeto de arte têxtil ainda está nascendo. Vai envolver a lã que eu mesma fiar, tinturas naturais, tecidos antigos, retalhos de tempo. Não sei o que ele será no fim, mas sei que já começou. Sei que está sendo gestado no mesmo ventre em que nascem os gestos pequenos e cheios de alma. Sei que não quero pressa, porque toda criação verdadeira precisa de tempo para encarnar.


E, enquanto esse tempo passa, vou fiando um pouco por dia. Uma volta do fuso, um nó que se desfaz, um suspiro mais profundo. E vou me permitindo esse aprendizado humilde, silencioso e forte; de estar presente no gesto e ausente da pressa. De deixar que algo maior do que eu vá se alinhando aos poucos, entre os dedos, entre os dias, entre os fios.


Ontem fiar parecia difícil. Hoje, parece inevitável. Como se eu tivesse começado a fazer parte de um ciclo muito antigo, de mulheres que, em algum lugar da noite, seguraram seus fusos e giraram com eles. Não só para fazer fios, mas para costurar a si mesmas. E para manter o mundo respirando devagar.


Com afeto,

Cláudia Gomes

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
bottom of page